segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O Exorcismo - e o fantasma da X-Box

Meus Queridos,
Perdoem-me a minha ausência. Sinto-me tão perdida. Já não sei o que faça da minha vida. Acho que estou a morrer. Como Sylvia Plath dizia, todos nós começamos a morrer a partir do momento em que nascemos, mas desta vez sei que estou mais perto de estar morta do que no dia em que nasci. Assombrada durante a noite e possuída durante o dia, passei quase um mês sem dormir. Sinto-me seca por dentro, como um pão que vai ao microondas durante demasiado tempo.
A minha artrite dá-me cabo dos dedos, mas nem por isso conseguia largar a consola. Inicialmente, comprei aquela porcaria para o gato Matias, porque ele estava de trombas e já não gostava de mim. Contudo, como o Matias não jogava, comecei eu a dar uso à coisa. Depois, apareceram aqueles suspiros e gemidos no meu quarto e tirei a fotografia àquele jovem espectro que me assombrava com aqueles olhos de quem me queria possuir. Pelo aspecto, devia ser um jovem fantasma com uns 18 anos, mais coisa, menos coisa. Agora, não percebo por que decidiu assombrar-me. E acho que ele me possuiu, de facto, porque os jovens, mesmo fantasmas, adoram jogar e eu não largava a consola nem por nada e os meus dedos continuam todos inflamados.

Eu nem sequer gosto de futebol e não parava de jogar Pro-Evolution Soccer 2010! E aqueles monstros aterrorizantes do Halo que me estavam sempre a matar e me provocavam aqueles pesadelos horripilantes! Estive quase um mês sem fazer as lides da casa, sem comer, sem me lavar, nada! As minhas vizinhas pensavam que eu estava a viver em casa dos meus filhos, porque nunca me viam sair de casa. Como é que pode ser? Estive quase um mês sem saber nada da vizinhança! Todas as conversas, brigas, coscuvilhices e segredinhos que eu perdi! À noite, quando tentava dormir qualquer coisa, lá aparecia o safardana do fantasma para me suspirar ao ouvido e me acordar. «Vai jogar, Antonieta! Ainda não chegaste ao último nível!» E eu limitava-me a obedecer, como se o meu próprio espírito já não habitasse mais em mim. O gato Matias já nem me reconhecia. Rugia de cada vez que me via!

Só quando a Celeste e o Senhor Padre vieram a minha casa, porque há já três semanas que eu não ia à missa, é que me livrei do fantasma que me tomava o corpo. Os rostos deles foram tomados de assombro quando mergulharam na obscuridade da minha sala e me viram.

- Dona Antonieta, vocemessê está num estado miserável. Largue a televisão. Precisa de se lavar, de comer...

- Estás a chamar-me porca, padre? Vai mas é para o Inferno chupar pichas com a tua mãe!

A Celeste até desmaiou! Nunca da minha boca tinham saído tais impropérios! Eu gritava e ralhava com eles até que o padre arrastou a Celeste dali para fora e foi chamar o bispo. Entretanto, depois de recuperar os sentidos, a Celeste foi pedir ajuda à pobre Lucinda, a qual, graças às suas cataratas, consegue ver o "outro mundo" com outros olhos.

Quando entraram em casa, plantaram velas por todo o lado e arrancaram-me o comando das mãos!

- Não!!! - Gritei eu, com uma voz que não era a minha. - Não gravei o último nível! Vou perder o jogo!

- O Poder de Deus Compele-te! O Poder de Deus Compele-te!

- Não me chateiem, seus bastardos, filhos de uma grande meretriz!

Foi então que amarraram ao sofá e atiraram a minha X-Box 360 para a lareira, desaparecendo por entre as chamas e o fumo negro do Inferno que encheu aquela casa. E enquanto exorcitavam aquele espírito maligno de dentro de mim, eu gritava e grunhia e cuspia e chamei-lhes nomes que nunca tinha ouvido na minha vida! A partir daí, não me lembro de mais nada. Parece que destrui a minha mesa de vidro da sala, uma moldura da minha querida Olívia, um retrato de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz e até mesmo o tampo da sanita! Depois, quando finalmente conseguiram que o demónio me libertasse, vomitei no lavatório até as tripas me arderem!

Agora, estou melhor. O Senhor Padre pediu às senhoras da Santa Casa da Misericórdia para me ajudarem durante uns dias. Elas podiam lavar-me a casa, trazer-me refeições, dar-me banho... Mas eu mandei-as embora, logo no primeiro dia! Trouxeram-me canja e queriam que eu me despisse à frente delas para me lavarem. Isso eu consigo fazer sozinha! Se me queriam ajudar, levassem-me para as termas e servissem-me caviar!