sexta-feira, 25 de junho de 2010

Faz as pazes com Deus, ó Saramago!

Meus queridos,
Eu sou uma pessoa que nos funerais tem sempre as mãos pousadas sobre o regaço e não pronuncia uma única palavra. Se alguém me começa a falar bem do morto, o mais certo é eu interromper «Descansa. Podes parar com a graxa. Está morto, já não te ouve.» e, se ouço alguém a chorar, eu sou aquela pessoa que diz «Shiu! O senhor prior está a falar!».
Eu não sou uma pessoa que chore nos funerais, ou que fale irritantemente sobre o quão adorável era o morto quando estava vivo. Que horror! Era o que mais me faltava! Eu não acredito em pessoas adoráveis. Ninguém o é! Todos têm nódoas na camisa! Eu sou aquela senhora, a Dona Antonieta, que passado algum tempo, quando já ninguém fala no morto e já toda a gente o esqueceu, começa a contar histórias sobre ele. Era o que me faltava, estar a engraxar um morto! Se não se fez enquanto estava vivo, já não se faz! Por isso, quando o Zé Saramago morreu, remeti-me ao meu silêncio e esperei que se esquecessem dele. Já passou uma semana, e agora, que já pararam de engraxar o morto e as atenções se voltaram todas para o futebol, lá nas Áfricas, posso pronunciar-me.
Quero lá eu saber que ele tenha ganho um prémio em terras de bárbaros nórdicos, ou que tenha escrito uma catrefada de livros. O Zé era um homem horrível que me atormentou desde pequenina. A minha aldeia, Casal da Desgraça, fica apenas a alguns quilómetros da Azinhaga, onde ele nasceu. Ele era mais lisboeta que ribatejano. Quando ele voltava à Azinhaga, toda a gente em Casal da Desgraça dizia que aquele rapaz era lisboeta. Nós conhecemo-nos quando eu tinha os meus seis aninhos e ele... sei lá eu... era mais velho... já tinha barba... Eu estava a caminho da capelinha de Nossa Senhora das Dores - que agora já foi demolida porque o telhado estava podre - quando o rapaz se cruza comigo e chocamos. Pediu-me desculpa, eu também, e conforme ele se ia embora eu despedi-me com um «Vai com Deus!», ao que ele me responde «Deus não existe!». Chorei tanto, Meu deus! Chorei tanto! Passei o terço todo a chorar. Rezei o terço três vezes a ver se me esquecia do que ele me tinha dito, mas não conseguia. Levei dois dias a recuperar.
Depois disso, estive muito tempo sem o ver, até me casar com o meu Arnaldo, Deus o tenha em paz, e nos mudarmos para Lisboa. Ora, o meu Arnaldo era bom amigo do Zé Saramago e eu, na altura, já nem me lembrava dele, até que um dia, ao jantar, convidei a querida Ilda, a mulher dele, a quem eu emprestei uma tesoura de poda que ela nunca mais me devolveu, a ir à missa no dia seguinte, e a levar a pequenina Violante também, para conhecer as outras senhoras da vizinhança e as criancinhas da catequese, ao que ele interrompeu, dizendo «Não acredito no tempo que as pessoas perdem a rezar a um Deus que não existe!» Lembrei-me logo dele! Que escândalo! Até parti um prato!
Nessa noite, ele mostrou ao meu Arnaldo um manuscrito de um livro chamado "A Viuva", que ele próprio tinha escrito... Queria publicá-lo em breve! Um dia, sem que o meu Arnaldo soubesse, li o manuscrito e fiquei horrorizada. Telefonei para a editora e disse-lhes que era um livro horrível e mais valia ser chamado "Terra do Pecado"! Tramei-o bem tramado. O livro foi publicado na mesma, mas alteraram-lhe o título. Depois disso, ainda escreveu um livro chamado "Claraboia" e eu decidi repetir a brincadeira. Estava à espera que o contrariassem novamente e também mudassem o título do livro para "Pouca Vergonha". Porém, em vez disso, não o publicaram...
Só dezanove anos depois é que ele voltou a escrever, quando o meu Arnaldo se descuidou e lhe disse que tinha sido por minha culpa que o "Claraboia" não tinha sido publicado... O Zé riu-se que nem um perdido e parece que ficou logo inspirado. Escreveu uns "Poemas Possíveis" e pediu-me para os ler. «Pára de escrever, Zé Saramago! Que o diabo te carregue! Pára de me massacrar, que o único livro que uma senhora como eu devia ler é a bíblia!» Mas ele insistiu. Ralhei tanto com ele que a besta do homem ficou a adorar-me. A partir daí passou sempre a mandar-me os seus manuscritos. Até parecia excitar-se por eu me enfurecer tanto.
Decidi mudar de técnica. Depois da "História do Cerco de Lisboa", disse-lhe «Olha, Zé. O livro é assim-assim.» Ele franziu o sobrolho e estranhou a minha simpatia. «Por que é que não tentas fazer uma daquelas histórias bonitas, como as do Livro Sagrado? Também têm pessoas sem moral e coisas esquisitas a acontecer...» Ele pareceu convencido e pouco depois mostrou-me aquela abominação, "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"! Como é que ele foi capaz?! Que horror! E o pior é que me sinto culpada por ele ter publicado o livro. Se eu tivesse sido simpática em vez de o ameaçar com a faca de cortar o pão, ele teria guardado o livro na gaveta. Por que é que eu o tentei matar com a faca de cortar o pão?! Sinto-me culpada até aos dias de hoje...
De qualquer forma, pior para ele, que se mudou para a Espanha! Mas nem mesmo lá longe deixou de me enviar aqueles manuscritos demoníacos. Bastaria que eu não os lesse e ele pararia de me atormentar! E eu ser capaz? Não era! De cada vez que recebia um manuscrito dele, eu ficava com ele dois dias sobre a mesa, tentando ganhar coragem para o atirar à fogueira. E, então, eu pensava «Calma, Antonieta! Se fazes isso, ele pensa que leste o livro e o detestaste mais do que aos outros!» E lá ia eu ler aquelas barbaridades sob a luz do candeeiro, para depois lhe escrever uma carta com todos os impropérios de que me conseguia lembrar!
Por cada vez que li um livro dele, voltei a ler a bíblia toda do génesis ao apocalipse, como que a pedir perdão a Deus Nosso Senhor. Finalmente, depois de ter cegado a humanidade inteira e de ter transformado a morte numa mulher, decidiu chamar filho da puta a Deus e dessa vez enfureci-me de tal forma que queimei mesmo o manuscrito e enviei-lhe as cinzas por correio. E não é que o velho rezingão também publicou aquele absurdo?
Enfim, agora ele morreu. Entretanto, já li a Bíblia outra vez e tenho a sensação de estar à espera que qualquer dia me apareça outro manuscrito cá em casa... Ouvi dizer que aquele rapazinho que me cumprimenta todos os dias quando vai para a faculdade aqui ao lado gosta de escrever... Talvez, um dia, me deixe ler um dos seus manuscritos...

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Dona Antonieta está de volta!


Meus queridos! Tantas saudades que eu tive de partilhar os meus dias convosco... Depois dos pequenos incidentes com a X-Box de há uns meses atrás, os meus filhos pensaram «A mamã está a ficar muito solitária e isso já não é bom na idade dela. Devíamos enfiá-la num LAR, COM OUTROS VELHINHOS CAQUÉTICOS COMO ELA!» A mim, Antonieta de Jesus Cristo-Rei no Céu e na Terra Aleluia Piriquita! Como é que foram capazes? Eu que sempre fiz a minha vida sem ajuda de ninguém, sempre tive a minha casa e lutei pelas minhas coisas! Até os meus bibelôs! A quantidade de vezes que lutei com aquela vaca da Josefa (que ainda não voltou do Brasil) pelos bibelôs que agora enfeitam os meus móveis! Consegui vencê-la sempre! Ela nunca comprou um bibelô que eu quisesse comprar!

Continuando... Eles levaram-me para um lar (supostamente) de luxo, com muitas regalias e muitos velhinhos com quem eu poderia conversar, mas aquilo era uma treta pegada! A maioria dos velhinhos nem falavam! Babavam-se! E aquilo não tinha luxo nenhum, se é que chamam luxo a eu ter o meu próprio quarto e uma casa de banho privada! A isso eu não chamo luxo! Chamo "o mínimo aceitável" para uma senhora como eu! Não vivi estes anos todos para me atirarem areia para os olhos!

Seja como for, lá conhecia a Julieta, uma grande coscuvilheira, mas boa amiga. Podíamos passar horas a conversar. E como o lar tinha muita gente, não era difícil arranjarmos motivo de conversa. Havia sempre os podres de alguém, os boatos deste e daquele... e como ela já lá estava há dois anos, conhecia também muitos outros que também por lá tinham passado, mas que já não se encontravam entre nós. Infelizmente, descobri mais tarde que metade das histórias eram falsas e que da mesma forma que ela falava comigo sobre os outros, falava com os outros sobre mim. Claro que ela não se ficou a rir, quando passaram no noticiário que se tinham casado duas lésbicas em Portugal (o Demo anda ocupado...) e eu me levantei-me e disse, diante de todos, alto e bom som, que uma delas era filha da Julieta!

Perdi uma amiga e ganhei muitas mais. É como na escola. Assim que mostrei que com a Antonieta não se brinca, tornei-me popular. Até tive os meus interesses amorosos. O Manuel Fonseca era muito galante, mas estava tão gordo, valha-me Deus... E o Alberto Silva também era um senhor com H grande (e não só, pelo que as enfermeiras davam a entender com os seus borborinhos, de cada vez que o ajudavam a tomar banho), mas era careca e faltavam-lhe dois dentes na dentadura... O Norberto também era encantador e sabedor na arte do engate, mas era casado e a mulher dele também habitava aquele lar. Lá por a mulher dele estar em coma, o casamento não deixa de ser sagrado...

Todavia, o meu Zé, o meu filho mais velho, foi despedido, e era ele que pagava a minha estadia neste "lar de luxo". Acontece que não é o meu único "filho despedido" e assim já não havia dinheiro para a mamã estar "internada" naquela espécie de hospício infernal onde me obrigavam a comer canja dia-sim-dia-não e a comer gelatina de pêssego quando o que eu queria era a de ananás.

Estou de volta, meus queridos! Estou em casa. O gato Matias foi quem sentiu mais a minha falta. Tão magrinho que ele está, depois de ter enchido a barriga a todas as gatas da vizinhança. Depois a dona é que tem de ouvir a Gertrudes a gritar porque a gatinha dela está prenha outra vez. Mas não faz mal. Agora, a Antonieta está de volta!